Aspectos jurídicos sobre a pandemia


Todos estamos cientes da importância do isolamento social para conter a escalada da pandemia do Covid 19. A quarentena é uma realidade que sabemos que cedo ou tarde vai acabar.

No momento, muitas empresas, comerciantes, empregados, profissionais liberais etc., estão de mãos atadas. Não há o que fazer, senão aguardar o desfecho dessa história inimaginável.

Mas e quando acabar, o que fazer? A vida volta ao normal? E as finanças de todos nós? E os empregos? E a atividade comercial?

Muitos afirmam que diversas empresas de pequeno e médio porte ficarão arruinadas financeiramente, muitos empregados serão demitidos e a economia ficará estagnada.

Essa será nossa realidade daqui alguns meses?

Ninguém pode prever. Todos escrevem obviedades, traçam cenários otimistas, pessimistas. Quem conseguir acertar o futuro agora tentará colher os frutos disso depois, alegando que tinha certeza de suas previsões.

Tentaremos nesse artigo vislumbrar alguns cenários possíveis que todos enfrentaremos, abordando questões jurídicas que impactarão no dia a dia de todos nós.

Evitaremos ao máximo repetir o que todos já sabem de cor e salteado, para não tornar a leitura enfadonha.

Não consigo cumprir um contrato devido à Pandemia

Todos os contratos assinados antes da pandemia foram celebrados num contexto socioeconômico considerado “normal”.

Esse contexto mudou radicalmente e os contratos devem ser adaptados para que possam ser cumpridos, na medida do possível.

A legislação brasileira prevê situações em que um contrato pode ser revisado, caso as partes não cheguem a um consenso.

É a chamada teoria da imprevisão, prevista nos artigos 478 a 480 do Código Civil, no artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor e na própria Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19).

Em resumo, essas regras estabelecem que na hipótese de um evento extraordinário gerar desequilíbrio contratual excessivo, o contrato pode ser revisado para adequá-lo à nova situação.

A legislação brasileira também prevê que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Considera-se caso fortuito ou de força maior o fato cujo efeito não era possível evitar ou impedir.

Não há dúvida de que essa pandemia representa um evento extraordinário que abalou inúmeras relações contratuais/comerciais/jurídicas existentes, bem como caracteriza um motivo de força maior, ou seja, algo imprevisível que gera consequências inevitáveis.

Na prática, o que isso significa?

Significa um encadeamento de fatos que, direta ou indiretamente, nos atingirão.

Por exemplo: o governo restringiu o espaço aéreo do país.

Portanto, as companhias aéreas deixaram de vender passagens aéreas e deixaram de faturar.

Sem faturamento, as companhias aéreas não têm dinheiro para pagar seus fornecedores, seus empregados e honrar seus contratos (por exemplo, leasing de aeronaves).

A empresa que fornecia refeições para as companhias aérea perderá seu faturamento e não terá dinheiro para pagar seus empregados e seus respectivos fornecedores.

Os empregados das companhias aéreas e dos fornecedores das companhias aéreas não terão dinheiro para pagar o aluguel das suas residências, a mensalidade da escola dos seus filhos, água, luz etc.

Esse efeito cascata se aplica a todos os setores da economia e não faltam economistas falando sobre esse assunto na televisão, nos jornais, na internet etc.

Tudo que foi dito acima é de conhecimento geral e pouco acrescenta à vida das pessoas.

O que pretendemos, neste modesto artigo, é traçar uma ideia do que pode ser feito, do ponto de vista jurídico, depois que a pandemia passar. Ou seja, traçar um plano prático para que as pessoas tentem recomeçar suas vidas com um norte para seguir.

Contratos com fornecedores e a Pandemia

Todo contrato é celebrado para ser cumprido integralmente.

Em situação de normalidade, muitos contratos já são descumpridos, por vários motivos (má-fé, falta de programação adequada, apostas comerciais que não deram certo, imprevistos da atividade econômica etc.).

Numa situação de pandemia (força maior), é normal que os contratos sejam descumpridos.

Não porque queremos; mas porque precisamos.

O que devemos fazer, então, quando não podemos cumprir um contrato assinado antes da pandemia (locação, compra e venda, empréstimo bancário etc.)?

Primeiro: não espere que o Estado vá resolver seu problema. O Estado nunca conseguiu resolver nem os problemas dele, quanto mais o seu.

As medidas paliativas anunciadas até o momento não terão o alcance desejado e certamente seus problemas terão que ser resolvidos por você mesmo.

Assim, nesse momento de incerteza, negocie dentro das suas possibilidades.

É o que o Judiciário fará quando essa crise acabar.

Muitos contratos serão revisados para que possa ser restabelecido o equilíbrio entre as partes.

Um exemplo simples: seu aluguel vai vencer nos próximos dias e você não tem dinheiro para pagá-lo, simplesmente porque seu estabelecimento comercial está fechado e suas pequenas economias estão sendo direcionadas para a alimentação e a higiene da sua família.

Contrato de aluguel durante a Pandemia

Negocie com o locador. Explique a ele sua situação econômica momentânea e busque um acordo. Acordo não significa não pagar nada e passar o problema para ele. Significa chegar num denominador comum. Provavelmente um valor reduzido para os meses que perdurar a pandemia ou algo parecido.

O mesmo raciocínio se aplica a um empréstimo bancário, a uma parcela da aquisição do seu imóvel etc.

Procure a outra parte e negocie.

Não havendo um denominador comum, esteja certo de que essa questão terá que ser negociada depois, no âmbito do Poder Judiciário.

Acreditamos que o Poder Judiciário terá sensibilidade para tratar das situações concretas, equilibrando a regra do “pacta sunt servanda” (os pactos assumidos devem ser respeitados) com a aplicação da teoria da imprevisão e do motivo de força maior.

Essa será a única alternativa para que os conflitos decorrentes da quarentena sejam resolvidos.

E tais conflitos ainda estão confinados em nossas casas porque o mundo está “pausado”. Mas quando a tecla “play” for acionada, serão incontáveis as situações levadas ao Judiciário.

Como se trata de situação inédita para o mundo jurídico, é prematuro apontarmos as soluções possíveis.

Mas é certeza que a boa fé e a transparência dos contratantes serão peças chave para a solução dos conflitos.

Todos que demonstrarem vontade de equacionar o problema voluntariamente, com propostas sérias e possíveis dentro de cada realidade, serão melhor avaliados pelo Poder Judiciário do que aqueles que tentarem se aproveitar da situação de pandemia para obter vantagens indevidas.

Eleição de Prioridades

Conselhos genéricos são fáceis de apresentar e difíceis de seguir, pela falta de objetividade.

Para fugir desse lugar comum, vale a pena fazer uma eleição de prioridades, de forma clara e objetiva, para quando a pandemia – ou pelo menos a quarentena obrigatória – passar.

Juridicamente, há situações que demandam uma providência urgente, outras que são importantes, mas podem esperar um pouco e algumas que são menos urgentes e podem aguardar uma solução mais demorada sem que isso impacte imediatamente no dia a dia das pessoas.

Vale destacar que a negociação sugerida no tópico anterior também se aplica à solução desses problemas, devendo ela ser considerada em primeiro lugar antes de qualquer medida judicial.

A – Providências urgentes

O Poder Judiciário decretou o recesso forense até 30 de abril de 2020, o que significa dizer que os Fóruns estão fechados e os prazos processuais suspensos.

Apenas medidas excepcionais e urgentes serão analisadas e nessa situação de pandemia, podemos qualificar essas medidas como verdadeiramente casos de vida ou morte.

Como fica o plano de saúde?

Uma situação que deve se agravar nas próximas semanas é a dos planos de saúde.

O convênio do plano de saúde pode ser rescindido pela empresa quando a inadimplência do conveniado ultrapassar 60 dias.

Portanto, nas próximas semanas começarão a surgir casos de pessoas inadimplentes há mais de 60 dias e com seus planos de saúde sendo rescindidos.

É certo que o Estado tem mostrado alguma preocupação em evitar o cancelamento dos planos de saúde por inadimplência, mas no momento ainda não existe nada de concreto, exceto orientações da ANS.

Dito isso, se necessário renegocie o valor do seu plano de saúde. Se não houver reciprocidade da empresa, que nesse momento está atordoada com a situação da saúde no país e do impacto financeiro que o Covid 19 causará, faça um “downgrade” no seu plano. Melhor perder o direito ao quarto privativo do que ser atendido pelo SUS.

Como fica a Pensão Alimentícia?

Pensão alimentícia é outra obrigação legal que deve ser renegociada imediatamente com seu ex-cônjuge. Deixar de pagar pensão implica na prisão civil do devedor. Enquanto a pandemia perdurar, provavelmente o Judiciário não irá aumentar a população carcerária. Mas quando ela terminar, certamente haverá uma enxurrada de ações pedindo a prisão do devedor de pensão alimentícia. Evite esse risco negociando corretamente com seu ex-cônjuge um valor adequado à sua situação financeira atual.

E os salários?

Finalmente, temos o salário dos empregados. O Estado está buscado privilegiar a negociação individual entre empregador e empregado, validando-a.

E certamente o Judiciário seguirá esse caminho quando analisar as demandas trabalhistas relacionadas à pandemia.

Contudo, o empresário não deve estar preocupado apenas com o ajuizamento das ações trabalhistas. Esse caminho demanda tempo e não é solução imediata para ninguém.

O empresário deve estar atento para o fato de que a quarentena vai se encerrar e ele vai ter que reabrir seu negócio, seja lá qual for.

E um negócio que dependia de empregados para funcionar não vai reabrir da noite para o dia sem mão de obra.

Portanto, o empregador deve ter a sensibilidade de preservar os empregos possíveis, vislumbrando que seu negócio será reaberto em breve.

E não existe emprego sem pagamento de salário.

O empregado, por sua vez, deve ter a sensibilidade de entender que a empresa está fechada e sem faturamento. E ele estará em casa, sem trabalhar, ou seja, sem oferecer a contraprestação pelo pagamento de uma remuneração.

E aqui não se trata da velha dicotomia patrão versus empregado. Aqui todos estão no mesmo barco. Todos são vítimas.

Portanto, recomenda-se uma redução salarial neste momento, com futuras compensações. A própria medida provisória 923 feita às pressas pelo governo criou algumas alternativas que podem servir como elemento de negociação: antecipação de férias, de feriados etc.

Aquelas empresas que conseguiram, bem ou mal, remanejar seu modo de trabalho através do home office foram menos afetadas, mas mesmo assim é questão de tempo que surjam conflitos decorrentes dessa alternativa.

Apenas uma observação de cunho prático: quem recorrer ao sistema bancário para obter empréstimos nesse momento deve estar atento para o fato de que o contrato de mútuo (empréstimo) está sendo celebrado durante a pandemia.

Portanto, as taxas negociadas nesse momento poderão ser válidas depois que a pandemia acabar, afastando a alegação de imprevisibilidade do contrato e/ou motivo de força maior.

Afinal, se o contrato foi celebrado durante a pandemia, não se trata de uma situação nova, incontrolável e imprevisível que afetou as partes contratantes.

B – Providências importantes a médio prazo

Todos os contratos que impactem no seu dia a dia, depois que a pandemia acabar, devem ser considerados e renegociados.

Mensalidade escolar, leasing de automóvel, aluguel de imóvel, pagamento de fornecedores e prestação do imóvel adquirido a prazo devem ser considerados problemas a serem resolvidos com a retomada da vida normal.

A renegociação deve ser feita num primeiro momento extrajudicialmente e, não havendo êxito, com a guarida do Poder Judiciário.

O Direito está atrelado à aplicação das leis existentes e ninguém pode prever como o Judiciário vai se comportar sobre os diferentes temas que serão submetidos ao seu crivo.

Contudo, tudo indica que o Judiciário levará em conta para a solução das demandas o ineditismo da ocorrência de uma pandemia em nível mundial.

A teoria da imprevisão e o motivo de força maior serão os temas mais discutidos em Direito nos próximos meses.

Penso que a letra fria da lei será abrandada pelo comportamento das pessoas durante a pandemia (boa-fé, iniciativa de resolver o problema amigavelmente e efetivo impacto da pandemia em cada caso concreto) e certamente surgirão decisões adequadas para reequilibrar os contratos.

C – Providências a longo prazo

Não é pretensão deste artigo incentivar a inadimplência e fomentar o descumprimento da lei.

Contudo, é inegável que o pagamento de tributos, nesse momento, deve ser colocado em último lugar na lista de prioridades das empresas ou pessoas cuja própria existência se encontra em risco.

Evidente que qualquer governo vai alegar a importância do pagamento dos tributos para a manutenção da sociedade como hoje entendemos.

Contudo, não há dúvida de que entre pagar o salário do empregado que é a mão de obra da sua empresa, pagar a mensalidade escolar que é o futuro do seu filho, o aluguel que é a sua moradia etc., etc., pagar qualquer tributo está em último lugar na lista de prioridades que todos teremos que eleger a partir de agora.

Isso não significa dizer que tais dívidas irão desaparecer como num passe de mágica.

Mas certamente elas poderão ser quitadas em condições diferentes daquelas inicialmente pactuadas.

Mesmo porque não se sabe quais medidas fiscais serão implementadas pelo Estado para socorrer as empresas depois que a pandemia passar e todos encararmos, de verdade, os prejuízos causados a cada um de nós.